terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A importância do falso diante dos efeitos de verdade


 

No último sábado, aconteceu o encerramento da temporada 2012 do Ciência em Foco. Recebemos o professor de Teoria da Literatura e Literatura e Cinema da UFF, Adalberto Muller, que abriu sua conversa conosco com a palestra F de falso: o autor e seus duplos, logo após a exibição do filme Verdades e mentiras (F for Fake, 1973), de Orson Welles. A conversa gerou um ótimo debate, no qual foram discutidas questões em torno da relação entre arte, verdade, pensamento e política. Adalberto iniciou sua fala situando a trajetória de Welles face ao filme, já que muitos o consideram um projeto afastado daquelas obras que o notabilizaram como diretor, como Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). À parte a estranheza que o filme causou na época de sua exibição, Verdades e mentiras foi aos poucos ganhando importância na filmografia de Welles, a ponto de ser considerado, por alguns, seu principal filme. Adalberto comentou também suas relações com motivos recorrentes na obra de Welles, dentre os quais se destaca o percurso em busca de alguém que possui uma identidade suspeita, ao longo do qual se questionam as fronteiras entre a verdade e a mentira. A partir desta marca da autoria de Welles, Adalberto nos convidou a pensar sobre a importância da questão da autoria na discussão sobre a arte dentro das ciências humanas, em cujo contexto o filme está situado.

No final dos anos 60, o papel do autor foi colocado em questão por intelectuais franceses, como os filósofos Michel Foucault (em seu texto O que é um autor?) e Roland Barthes (em seu texto A morte do autor). Foucault, por exemplo, comentou ter sido comum, em outros tempos, a produção artística estar associada ao anonimato. No entanto, em nosso tempo, a assinatura, a autoralidade da obra, parece ser a garantia de seu valor, sobretudo o seu valor monetário. De fato, o filme de Welles tem como uma de suas principais reflexões a pergunta sobre até onde a arte depende da assinatura. Seria a assinatura determinante para a experiência artística? Por haver a importância atribuída ao autor, a autenticidade da obra também se torna importante: a distinção entre a obra verdadeira e a falsa. Neste sentido, o filme de Welles apresenta elementos interessantes desde a produção. Ele é um filme construído a partir de um outro filme, de outro diretor, do qual ele utiliza cenas e sobrepõe diversas camadas, chamando atenção para o aspecto do falso evocado pelo primeiro, adicionando dimensões outras e incluindo também elementos autobiográficos.

Tradicionalmente entendido como um documentário, o filme traz problemas quanto a sua delimitação em um gênero. Embora seja considerado hoje como um primeiro “filme-ensaio”, até então não se conhecia esta noção, que Jean-Luc Godard, por exemplo, irá empregar mais à frente. Ele também deu início ao gênero mockumentary, espécie de documentário falso que brinca com dados verídicos, recorrente a partir dos anos 90. Adalberto também chamou atenção para as ressonâncias do filme com o que será posteriormente a influência das características do vídeo no cinema (elementos para os quais vão se voltar cineastas como Godard e Antonioni), sua liberdade de criação e edição, ao mesmo tempo em que dava os primeiros passos para colocar em cena um tipo de filme muito presente e discutido no mundo contemporâneo, o filme de arquivo. Foi comentada a proximidade do filme com a obra de Lewis Carroll, autor de Alice no país das maravilhas, pelo fato de o filme se sustentar sobre a figura do paradoxo, apresentando uma superfície (a discussão sobre a falsificação no mundo das artes plásticas) que se desdobra em infinitas dimensões (quando sugere discussões sobre os paradoxos da verdade e da mentira, a partir de um viés mais filosófico).

O aspecto político do fazer artístico também é um dos pontos fundamentais para os quais Orson Welles chama atenção no filme. A indústria do cinema, especialmente Hollywood, com seu processo fascista de produção, acaba restringindo e escamoteando as possibilidades da experiência cinematográfica, cuja origem se associa a uma dimensão mágica. Apesar de a indústria escamotear a magia do cinema quando prioriza o mercado, Welles nunca abandonou esta dimensão, ciente de que ela pode dar acesso a outras formas de experimentar o mundo. Daí sua insistência, com Verdades e mentiras, na positivação do aspecto do falso, da ilusão, na potência criativa de ressignificar as coisas e o mundo. Welles dialoga com processos em voga hoje no mundo digital e na arte contemporânea, quando eleva a apropriação do material alheio ao estatuto de arte. Deste modo, desloca-se também a questão da autoria, a ideia de criação artística associada à figura do gênio, ao isolamento. O filme nos convida a pensar a arte situada na criação coletiva, implicando em uma democratização do pensamento e dos processos a partir do qual se produz e se experimenta a obra.

No mundo de imagens em que vivemos, a verdade é menos importante do que a ilusão de verdade, do que seu efeito. Portanto, a tarefa que se configura seria pensar muito mais nos efeitos de verdade do que nas verdades, em como são produzidos certos efeitos de verdade. Eis a lição política de Orson Welles. A discussão trazida em nosso encerramento de temporada não poderia ser mais adequada: ela também dialoga com muitas das conversas que tivemos em nossas sessões ao longo do ano, que nos fizeram pensar, com os filmes, sobre as maneiras pelas quais determinadas verdades são construídas, o modo como determinados conhecimentos são gerados e a forma como afetam nossa relação com o mundo. Nos vemos na sessão inaugural da próxima temporada, no dia 2 de março de 2013! Fiquem ligados no blog para uma retrospectiva da temporada 2012, para notícias sobre nosso próximo livro e para as atualizações da nossa programação. A equipe deseja a todos um feliz ano novo!




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