terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Você não conhece Jack

A partir deste mês, estamos inaugurando no blog um novo tipo de participação dos palestrantes do cineclube, com a apresentação de textos curtos e leves sobre os temas a serem desenvolvidos nos encontros, em diálogo com outros filmes, textos e imagens. 

A convidada de dezembro é a médica e doutora em saúde coletiva Rachel Aisengart Menezes.

Inicialmente este filme seria lançado no cinema, mas a produção decidiu lançá-lo apenas na TV, o que ocorreu em 2010. Baseado no livro de Neal Nicol and Harry Wylie, publicado em 2006, "Between the Dying and the Dead: Dr. Jack Kevorkian, the Assisted suicide Machine and the Battle to Legalize Euthanasia", a versão final do filme e a caracterização do personagem central, vivido por Al Pacino, foram aprovadas por Jack Kevorkian.

O filme aborda um tema que cada vez mais tem sido debatido no Ocidente, a partir da segunda metade do século XX e, especialmente, no XXI: a gestão do processo do morrer e o direito de autonomia individual. Neste sentido, Jack Kevorkian é porta-voz de críticas aos excessos do poder médico, entre as décadas de 1950 e 1980, quando houve uma espécie de “deslumbramento” com as novas tecnologias voltadas ao diagnóstico de doenças, à criação de novas formas de criação e de manutenção e/ou para o prolongamento da vida.

O médico Jack Kevorkian defendeu a ideia de que o ser humano tem o direito de morrer da forma que considerar mais “digna”, no caso de doenças terminais. Apoiado pelo amigo Neal Nicol e por sua irmã Margo Janus, ele passa a prestar uma "consultoria de morte". Assim, Jack ajudou na concretização de mais de uma centena de suicídios assistidos. Segundo divulgado em sites sobre o filme, esta seria a razão do apelido de Dr. Morte. Contudo, este apelido é anterior à proposta de ajuda para doentes alcançarem o alívio de seu sofrimento, pela interrupção da vida – seja por suicídio assistido ou pela eutanásia. O apelido de Dr. Morte surgiu durante o período da faculdade, quanto ele fotografava os olhos dos pacientes mortos. Nessa época Kevorkian se tornou popular, ao defender que órgãos de pacientes mortos fossem retirados para transplantes. Jack se formou como médico patologista e se tornou chefe do setor de patologia do hospital de Detroit, ficando até o final dos anos 1970, quando passou a se dedicar a ajudar pacientes terminais a porem fim a suas vidas, por considerar que toda pessoa tem o direito de encerrar a própria vida, e que o médico deve auxiliar na execução deste ato, para que seja indolor. Em 1988 ele inventou a Tanatron, uma máquina do suicídio. Com ela o doente conseguia, ao tocar em um botão, injetar drogas em seu organismo, para morrer sem dor ou angústia respiratória.

O tema da gestão da morte pelo aparato médico já havia sido abordado em outros filmes, como Filadélfia, de 1993, sobre a AIDS; Wit, uma lição de vida, de 2001; Mar adentro, de 2004 e Uma prova de amor, de 2009 – entre outros. Com ênfases diferenciadas, todos estes filmes explicitam a importância do desejo do doente, no que tange às decisões sobre o término da própria existência.









Com o advento e a criação de recursos inovadores para a criação, manutenção e o prolongamento da vida, surgem novos termos, concernentes a cada nova condição de existência. Assim, tratamento fútil, encarniçamento terapêutico, obstinação terapêutica, cuidados paliativos, entre outras expressões, passam a integrar o vocabulário de doentes com diagnóstico de enfermidade crônico-degenerativa, como por exemplo, câncer, AIDS terminal e/ou outras patologias de longa duração, como enfisema pulmonar, esclerose lateral amiotrófica (o filme Hilary and Jackie aborda o tema, a partir do caso da violoncelista Jacqueline du Pré) ou demência de Alzheimer (sobre este tema, ver o filme Iris).





Diante de cada nova possibilidade – como se deu tanto com a criação do respirador artificial, com a possibilidade de doação e transplante de órgãos, quanto com a reprodução assistida e suas diversas modalidades – faz-se necessária a formulação de novas normas e leis, em cada contexto. Cada condição inovadora incita uma produção de sentimentos – sejam eles de aceitação ou de recusa das novas condições – e de esperanças. Ideais de vida – e de morte – são elaborados por diferentes grupos, em cada cultura e/ou sociedade. Neste sentido, para uns, a morte “com dignidade” pode ser alcançada com suporte de equipe de cuidados paliativos, enquanto para outros, seria aquela resultante de eutanásia ou de suicídio assistido.

O século XXI tem assistido à crescente legalização da eutanásia e do suicídio assistido, em diferentes países, bem como à ampliação das possibilidades de atuação médica no último período de vida de doentes com doenças crônicas sem possibilidades terapêuticas de cura – ou, em termos mais correntes, pacientes terminais. Tais normas e leis passaram a ser incluídas no rol dos direitos humanos – por se tratar do direito a não sofrer – integrando o conjunto de políticas públicas de saúde, em vários países do Ocidente. Diretrizes são formuladas pela ONU e OMS, no que tange à assistência deste tipo de doentes e, também, acerca das capacidades e limites da atuação médica.

O filme sobre Jack Kervokian não aborda somente as ideias de um médico. Ele contém dados sobre o que o filósofo Giorgio Agamben denominou de zoe e bios: o corpo político e o corpo biológico – duas condições distintas, que fundamentam o direito de decidir pelo término da própria existência, quando esta não apresenta mais a possibilidade de fruição do viver. O tema do filme não é de fácil assimilação – nem deve ser – mas merece atenção e reflexão, por sua relevância na atualidade.


Rachel Aisengart Menezes
Médica, doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ (IMS/UERJ), professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ (IESC/UFRJ) e autora do livro Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Ela é a convidada de dezembro do Ciência em Foco.

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